Terror é um gênero interessante. É um gênero que pode vestir uma diversidade de máscaras diferentes, e um dos poucos que se permitem negligenciar certos aspectos para enfatizar outros. Historia, atmosfera, sonoplastia, o caminho escolhido varia não só de espécime para espécime, mas também de mídia para mídia — no final do dia, entretanto, a grande questão é sempre a mesma: e aí, dá medo? Um jogo de terror, em especial, pode ser classificado como bom ou ruim independente de gráficos ou jogabilidade, desde que cause ou não aquele famoso friozinho na espinha. Um bom exemplo, bastante recente e devidamente hypado, é o polêmico Slender: enquanto gráficos, historia e jogabilidade são coisas que Slender não conhece, a atmosfera que o jogo cria é simplesmente aterradora, e isso basta para torná-lo um título de terror respeitável. Então, para criar um bom jogo de terror, basta fazê-lo assustador o bastante, certo? Certo, mas aí é que está — não é qualquer coisa que dá medo. Enquanto terror é um gênero que requer muito pouco, aquilo que ele requer é muito difícil de se conseguir, e o resultado é uma quantidade lastimável de jogos de terror realmente bons — isso é o que o torna um gênero interessante. O lado bom? Qualquer um pode tentar fazer terror, e de fato, a maior parte dos sucessos relacionados ao gênero partem não das grandes empresas de games, mas de autores anônimos, mesmo. Esses autores anônimos possuem uma coisa que as grandes empresas não têm: liberdade artística, e direito à simplicidade. De fato, uma receita fadada ao sucesso é terror mais simplicidade. Terror simples — e isso é tão difícil de se realizar quanto soa — é uma das formas mais efetivas de terror. Não coincidentemente, uma das plataformas mais procuradas nos últimos anos para realizar terror é o RPG Maker, certamente não conhecido pelos maiores exemplos de gameplay e gráficos da indústria de jogos. Os dois jogos que vou analisar e comparar hoje foram criados com essa plataforma, e, também não coincidentemente, por autores anônimos. Senhoras/es, apresento-lhes Ib e Majo no Ie!
Já que Ib foi previamente abordado aqui no blog, vamos falar um pouco sobre Majo no Ie. Também conhecido como The Witch’s House, o jogo é um puzzle solver criado pelo desconhecido Fummy com o RPG Maker para o PC. Ib e Majo no Ie são dois jogos bastante interessantes de se comparar por serem precisamente dois lados de uma mesma moeda. A descrição de Majo no Ie não é semelhante a de Ib por mero acaso — de fato, e um bom observador já terá notado isso através das print screens de ambos os jogos dispostas neste post, os dois títulos são muito parecidos. Gráficos, sonoplastia, dinâmica, jogabilidade e até atmosfera são de fato muito semelhantes. E a apresentação — uma adorável, jovem protagonista presa em um atmosférico mundo de loucuras e perigos — é, até certo ponto, precisamente a mesma para os dois títulos. Mas, de fato, por mais semelhantes que pareçam, os jogos são precisamente opostos um ao outro. Arrisco até dizer que Ib e Majo no Ie são o mesmo jogo, construído através de perspectivas diferentes.
Ib começa bastante inofensivo, e a cena de abertura certamente pega o jogador desavisado de surpresa. Quando as luzes se apagam e todos os visitantes do museu somem, o mais cético dos jogadores acaba levantando uma sobrancelha diante do estranho fenômeno que se segue — de repente, um jogo 2D com gráficos deploráveis torna-se, vejam só, assustador. Desde que ambientada corretamente, a cena de abertura de Ib pode causar sinceros frios na espinha — a atmosfera é simplesmente brilhante. Com Majo no Ie, não é diferente; os primeiros momentos dentro da casa da bruxa podem ser absolutamente aterradores para um jogador de primeira viagem, não por serem particularmente assustadores — bem, são — mas por serem completamente inesperados. Entretanto, depois das cenas iniciais, os jogos começam a seguir caminhos diferentes; precisamente opostos, na verdade. Depois que Ib é sugada para dentro do quadro e recebe sua rosa, o jogo perde bastante do elemento suspense e começa a focar unicamente nos puzzles. O suspense só vai de fato reaparecer com força um pouco mais para frente, quando a jovem protagonista começar a interagir com as outras componentes do elenco. Em Majo no Ie, isso não acontece — o suspense nunca se perde de fato, embora tenha picos e nuances bem demarcadas ao longo do enredo. Se Ib suaviza o elemento terror em prol de historia e personagens, Majo no Ie mantém, de forma quase opressiva, a atmosfera de suspense por toda a duração — inteligentemente curta — do jogo. De fato, o que torna esses títulos respeitáveis é sua capacidade de focar certos aspectos sem negligenciar outros completamente; quotando o primeiro parágrafo deste post, terror é um dos poucos gêneros que “se permitem negligenciar certos aspectos para enfatizar outros”, o que absolutamente não significa que essa negligência seja necessária ou sequer recomendável — é apenas possível. Ib pode não ser absolutamente aterrorizante, mas armado com um arsenal de interessantíssimos jumpscares, sempre muito bem cronometrados, faz-se atmosférico e sombrio por toda sua duração. Majo no Ie, por sua vez, pode parecer seguir um enredo bastante genérico a princípio, e é exatamente por isso que mesmo o jogador mais atento vê-se surpreendido pelo desfecho de sua historia.
A gameplay, para ambos os jogos, é praticamente a mesma. Você move Ib e Viola com as setas do teclado; seu objetivo é interagir com objetos para resolver puzzles, e fugir de inimigos quando necessário. Mas as diferenças estão lá, e são significativas: começando com a dificuldade, os puzzles de Majo no Ie são muito mais complexos do que os de Ib, o que não é nada surpreendente. Ib é um jogo, nas palavras de seu autor, feito para que “todos possam completá-lo”. O motivo para isso é simples o bastante: Ib é, mais do que um jogo, uma historia, contada através de uma plataforma interativa. E se Majo no Ie também conta uma historia, o foco narrativo é outro — ao fazer o jogador desavisado concentrar-se em puzzles complicados, Majo no Ie consegue pregar sustos muito eficientes. Também não coincidentemente, se Ib investe em diálogos e em bifurcações de enredo — para efeito de comparação, Ib possui 5 finais diferentes e Majo no Ie, 3 variações de um mesmo final –, Majo no Ie possui uma quantidade muito mais significativa de sequências de perseguição. Além disso, Majo no Ie possui um sistema de armadilhas — uma escolha errada, e adeus Viola — enquanto em Ib, as personagens podem recuperar seu HP e, com apenas algumas raras exceções, não há mortes instantâneas. Notável como Fummy deixa seu jogador irremediavelmente apreensivo na espera agonizante pelo próximo susto, pela próxima armadilha, por toda a duração do jogo. Isso, Ib não faz: não apenas pelos motivos já citados, mas a presença de outras personagens em torno da encurralada protagonista dá ao jogador um senso de segurança que ele não sente ao guiar a solitária Viola pela sombria casa da misteriosa bruxa. Ao mesmo tempo, Majo no Ie perde bastante em caracterização por não cercar Viola de personagens com que ela possa de fato interagir — exceto pelo gato preto, talvez.
Tendo sido expostas as diferenças, as semelhanças são muitas, e bem demarcadas. Gráficos e sons são bastante parecidos, a atmosfera é semelhante e até a historia possui pontos em comum. Mas, mais do que tudo isso, a atenção ao detalhe é muito presente e bastante significativa para os dois títulos. É recomendável, ao se jogar tanto Ib quanto Majo no Ie, voltar aos quartos já visitados e interagir com objetos já utilizados mais do que algumas vezes — aquele espelho pelo qual você passou pode se quebrar se você voltar após completar um puzzle, aquele livro pode dizer outra coisa se você lê-lo novamente após descobrir algo sobre o enredo que não sabia antes. Esses pequenos detalhes, de qualquer outra forma insignificantes, criam uma angustiante atmosfera de antecipação que sinaliza um perigo iminente, desconhecido; esses agonizantes, opressivos momentos que antecipam o que está por vir, desde que bem administrados, podem ser muito mais aterradores do que o fato consumado.
Bem, sem mais delongas. Vamos ao veredicto! É possível afirmar que um jogo é melhor que o outro? Afinal, embora sejam muito parecidos, Ib e Majo no Ie são, como já dito anteriormente, lados diferentes de uma mesma moeda: são jogos irmãos, que se complementam — um faz o que o outro deixa de fazer. Enquanto isso é de fato verdade, não podemos esquecer que Ib e Majo no Ie são títulos completamente independentes um do outro, criados, inclusive, por autores diferentes. E, embora sejam ambos jogos muito bons, têm cada um seus erros particulares de execução. Ib acaba sendo, definitivamente, o jogo superior — o que é, de fato, irônico, já que o título não segue a linha clássica de terror descrita no primeiro parágrafo deste post. Ib não coloca o medo como seu objetivo maior, atitude muito ousada e diversas vezes depreciada pela indústria de jogos de terror. Há o medo como elemento indispensável, obviamente — ele só não é enfatizado. E enfatizar o medo não é imperativo a um bom jogo de terror, desde que ele esteja lá. Mas ser mais ousado não é a única coisa que coloca Ib a frente de seu oponente: Ib é melhor naquilo que faz do que Majo no Ie, por assim dizer. Para ilustrar, o jogador tende a sentir mais simpatia pelas personagens de Ib do que medo das assombrações de Majo no Ie. E, no final do dia, Ib tende a ser um jogo muito mais memorável. Majo no Ie é, entretanto, um título respeitável que consegue olhar Ib nos olhos como poucos outros conseguem. E, afinal, fica sempre ao gosto do freguês: muitos vão achar Majo no Ie superior a Ib, pois os jogos possuem perspectivas opostas que se adequam a diferentes gostos. O que vale é jogar e decidir por si mesmo qual agrada mais.
Para jogar Majo no Ie, faça o download do jogo no seguinte website:
http://vgboy.dabomstew.com/other/witchhouse.htm
Para jogar Ib, acesse o post sobre o jogo no blog:
https://nerukiya.wordpress.com/2012/09/05/jogo-ib/
por Rika